Direitos trabalhistas entre o mar e o rochedo

Enquanto o mar e o rochedo se entendem quem perde é o marisco.

                                                                                                   Agenor Calazans da Silva Filho

Não é assim o dito popular, bem sabemos. A ocasião é que dá ensejo a essa variação.

Nesse período de enfrentamento da pandemia, com a inevitável retração da atividade produtiva, há necessidade de que os Poderes constituídos se debrucem na busca e edição de medidas que intentem diminuir os efeitos negativos da abrupta redução da atividade econômica. E, sim, medidas foram adotadas. Vejo em sítio da internet (www.gov.br) que o Governo até lançou uma página específica “para apoiar o setor produtivo”. A página tomou o sugestivo título de “vamosvencer”. O slogan expressa ideia de conjunção, pois, “vamos” significa que estamos em comunhão e o propósito dessa comunhão é vencer. Entre as medidas adotadas estão o adiamento do pagamento dos impostos federais no Simples Nacional, a suspensão de processos de cobrança da dívida ativa da União e novas condições de parcelamento para Pessoa Física ou micro ou pequena empresa. Até aí o que se constata são medidas que afetam as relações de empresas e empresários individuais com o Poder Público. De relevância, portanto, o diálogo que, por meio de sua página “vamosvencer”, o Poder Público mantém com esses atores do cenário econômico empresarial.

Porém, o Governo vai adiante e anuncia também, ainda em apoio ao setor produtivo, “medidas excepcionais e temporárias para manutenção dos empregos”, já agora afetando relações entre empresas e seus empregados, praticando o que na página “vamosvencer” identifica como “flexibilização trabalhista”. A suspensão do contrato de trabalho e a redução da jornada proporcional à redução do salário são as medidas mais divulgadas. Essas medidas impõem restrições aos direitos do trabalhador, mas, em contrapartida, pelo menos garantem a continuidade do emprego depois do período da suspensão ou da redução da jornada e do salário por tempo equivalente (assim, contrato suspenso por dois meses implica garantia do emprego pelos dois meses subsequentes). Há também possibilidade de recolhimento futuro dos valores devidos ao FGTS, antecipação, parcelamento e postergação do pagamento do adicional de 1/3 das férias entre outras medidas, todas afetando os direitos dos trabalhadores, todas anunciadas em apoio ao setor produtivo.

Tomara seja equívoco, mas não se localiza sítio na Internet que trate de apoio à classe trabalhadora, o que sugere que semelhante diálogo não ocorre entre o Poder Público e os operários que, com sua força de trabalho, tocam o chamado setor produtivo. O alijamento dos trabalhadores da formulação de propostas para o enfretamento da crise retira deles a condição de atores das relações de direito material que agora são submetidas às “medidas excepcionais e temporárias para manutenção dos empregos” anunciadas pelo Poder Público em sua página “vamosvencer”, evidenciando que na ideia de conjunção que o uso do vocábulo “vamos” sugere os trabalhadores não estão inseridos.

Ao que parece, a falta de diálogo com a classe trabalhadora não é algo exclusivo do Poder Executivo. Agora mesmo, estando em tramitação no Congresso Nacional, a Medida Provisória 927/2020 recebeu, no Parlamento, alteração para dispor que ficam suspensos os acordos celebrados na Justiça do Trabalho! As mais das vezes o trabalhador que vai à Justiça já perdeu o emprego. As mais das vezes o que busca na Justiça é exatamente o pagamento das verbas rescisórias (os direitos que decorrem do rompimento do contrato de trabalho). As mais das vezes quando há acordo há também redução do valor devido e parcelamento. Pois bem, pela proposta, o trabalhador que tenha celebrado acordo na Justiça somente poderá voltar a receber seu crédito em janeiro de 2021. Mais uma ajuda aos empresários – e aos empresários inadimplentes, pois o descumprimento da Lei antecede à pandemia – sem nenhuma contrapartida aos trabalhadores! O projeto de conversão da medida provisória em lei ainda será apreciado pelo Senado, mas espanta a expressiva votação favorável na Câmara dos Deputados (315 votos favoráveis e 115 contrários).

Nos termos da Constituição Federal lei nenhuma pode investir contra a decisão feita coisa julgada (e acordo judicial constitui coisa julgada irrecorrível). Todavia, se é para suspender, então por que somente os acordos trabalhistas e não todos os acordos em todos os segmentos do Poder Judiciário? Assim, ao menos, o trabalhador que estivesse devendo aluguel e houvesse celebrado acordo de pagamento parcelado, também estaria desobrigado. Aliás, por que não suspender todas as obrigações de empresas com seus fornecedores de matéria-prima e de insumos, de mercadorias para revendedores, de clientes de lojas de varejo e atacado, de financiamentos e quaisquer operações de crédito?

Há medidas que ajudam os empresários em face da Fazenda Pública. Já nas relações entre particulares a proposta exonera os empresários apenas de créditos trabalhistas sem mínima razão para essa discriminação, a não ser o concerto em diálogo, que existe com a classe patronal, mas inexiste com a classe trabalhadora, daí se concluir que enquanto o mar e o rochedo se entendem quem perde é o marisco.

                                                                       Agenor Calazans da Silva Filho – Juiz do Trabalho

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